A jurisprudência em época de coronavírus
O Direito nos países ocidentais possui grande tendência a se filiar a duas espécies de sistemas jurídicos, o civil law e o common law.
Em linhas gerais e resumidas, o civil law consiste em um sistema jurídico originado na tradição romana, predominando o positivismo. Nele a norma jurídica constitui-se em comando geral e abstrato prescrito em instrumento normativo próprio. Esta norma deverá reger as condutas intersubjetivas, podendo prescrever sanções ante o seu descumprimento. Diante do caso concreto no âmbito judicial, o julgador a aplicará inaugurando a norma individual e concreta.
Por sua vez, o common law, sistema jurídico originário da influência anglo-americana, é aquele que se baseia na utilização de precedentes para análise de novos casos concretos postos à apreciação do poder jurisdicional. É o que comumente vemos nos Estados Unidos, maior exponencial ocidental do common law.
Sabemos que o Brasil se filia ao sistema jurídico denominado civil law, razão pela qual temos diversos diplomas legais prescrevendo condutas em todas as áreas relevantes ao Direito. Portanto, ao requerer a análise jurisdicional sobre determinado caso concreto, o julgador não deveria se valer apenas de precedentes. Ele deve explicitar a subsunção do caso concreto à normal geral e abstrata aplicável, inaugurando a norma individual e concreta.
Inobstante, o Código de Processo Civil de 2015, objetivando conferir maior segurança jurídica à sociedade jurisdicionada, bem como estabilidade à decisão judicial, trouxe diversos dispositivos que ‘supervalorizam’ o alcance da decisão judicial. A título de exemplo, o artigo 926 determina aos tribunais que uniformizem sua jurisprudência[1] e o artigo 927[2] especifica rol de precedentes cuja vinculação é indiscutível. Seu inciso III é bem claro ao determinar a observância de decisões proferidas em sede de demandas repetitivas. Ademais, por meio da interpretação sistemática do Codex Processual há vinculação das decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça em sede de recurso repetitivo e pelo Supremo Tribunal de Justiça em sede de recursos com repercussão geral.
Por outro lado, independe das normas processuais positivadas, sabe-se que o Judiciário brasileiro possui o costume de não ignorar os posicionamentos firmados pelos órgãos colegiados hierarquicamente superiores. Afinal, haveria fundamento racional em proferir decisão divergente já que a parte poderá interpor recurso e a decisão será reformada, mantendo-se a uniformidade das decisões dos tribunais?
Neste cenário, há quem questione se realmente ainda vigora o princípio do livre convencimento motivado do juiz. Independente da resposta a esta questão, é fato que ao aplicar qualquer precedente o julgador deve, anteriormente, avaliar todos os aspectos fáticos (e probatórios) a embasarem a pretensão particular, a fim de concluir que o precedente que fundamentará sua decisão realmente analisou aspectos fáticos semelhantes. É o que se chama de subsunção do fato à norma. Para tanto, devem ser analisadas as hipóteses fáticas que ensejaram o precedente, ou seja, os recursos analisados pelo órgão colegiado.
Destarte, mormente com Código de Processo Civil de 2015 e a maior valoração do sistema de precedentes, embora haja clareza na adoção do civil law pelo ordenamento jurídico brasileiro, há forte influência hodierna do common law. A dúvida sobre o sistema jurídico adotado mostra-se pragmática, afinal se a decisão judicial pudesse se basear apenas em precedentes, inexistiria necessidade de construção pelo julgador da normal individual e concreta, explicitando a aplicação da lei sobre o fato concreto.
Independente das designações e denominações que encontramos na doutrina brasileira, sabe-que os precedentes são indiscutivelmente replicados nas decisões judiciais. Inclusive, sua força normativa no âmbito tributário é tamanha a ponto de, muitas vezes, impedir a correta valoração do caso concreto e do material probatório apresentado.
Diante da crise atualmente vivida, originada na declaração de calamidade pública do sistema de saúde, que atingiu todos os brasileiros, em todas as áreas possíveis, a necessidade de revisão da jurisprudência e adequação ao momento vivido é imprescindível! Não é possível ao Poder Judiciário simplesmente replicar decisões proferidas, ainda que pelos Tribunais Superiores, em contexto fático profundamente diferente do que temos hoje.
Para exemplificar, citam-se os posicionamentos jurisprudenciais atinentes às execuções fiscais. O STJ possui entendimento pacificado para cada área deste processo executivo, seja para atestar a impossibilidade de substituição da garantia ofertada (ERESP 1.077.039/RJ), seja quando reconhece a impossibilidade de suspensão da exigibilidade do crédito tributário por meio do oferecimento de seguro garantia ou fiança bancária (REsp. 1.156.668/DF).
Entretanto, no momento atual, reconhecendo-se as dificuldades econômicas que os contribuintes, mormente as pessoa jurídicas, enfrentam, não seria possível ao Judiciário negar a substituição da garantia ofertada com base neste precedente. É comum que o executado peça a substituição do depósito em dinheiro do crédito tributário, que foi ofertado apenas para possibilitar a apresentação dos embargos à execução fiscal, por uma fiança bancária, que (em geral) possui a mesma liquidez e possibilita movimento do fluxo de caixa à empresa.
Também não seria possível ao Judiciário, a par da situação atual, negar a suspensão da exigibilidade do tributo cujo crédito tributário encontra-se garantido por fiança bancária ou seguro garantia, com base no precedente citado. Portanto, ainda que o precedente enquadre-se na situação fática apresentada, a superveniência da crise atual torna imprescindível sua revisão.
Por fim, o caso que aparentemente demanda maiores cuidados na aplicação do precedente são aqueles relacionados à criminalização do ICMS declarado e não pago. O STJ, ao apreciar o HC 399.109/SC, reconheceu a conduta típica prescrita no artigo 2º, inciso II, e 11, caput, da Lei 8.137/1990. O STF, no RHC 163.334, manteve o mesmo entendimento.
Todavia, inobstante os julgados citados, sabe-se hoje que, diante da crise vivida e paralisação de diversas atividades e estabelecimentos, muitas empresas estão tendo que escolher entre a quitação total de seus tributos ou da sua folha de pagamento. Ainda com as medidas governamentais, a escolha não tem sido fácil. Destaca-se ainda que, grande parte dos estados não concedeu qualquer benefício relacionado ao ICMS. A conclusão óbvia é o atraso no pagamento deste imposto.
Independente de nossas considerações anteriores em relação a esta matéria, é óbvio que tal atraso não evidencia o dolo necessário ao crime de apropriação indébita. Trata-se, portanto, de mais uma hipótese que demanda bastante cuidado do julgador ao aplicar o precedente ao caso concreto.
O momento atual pode ser visto como crise ou oportunidade, mas em qualquer caso a revisão dos sistemas e costumes até então adotados – inclusive no âmbito jurídico – é imprescindível, revisão esta que ensejará importantes alterações no futuro. No que tange à jurisprudência e ao sistema de precedentes, demonstramos a necessidade de parcimônia do julgador ao aplicá-lo ao caso concreto para que, além da subsunção do fato à norma, leve-se em consideração a superveniência do coronavirus e a situação que os jurisdicionados tiveram que se adaptar rapidamente.
[1] CPC. Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
[2] Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II – os enunciados de súmula vinculante;
III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.